Invisível

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– Normal

– Como assim, normal?

– Oras, normal.

A resposta, embora ainda surpreendente para a mãe, era repetida, dia após dia, desde os primeiros anos de escola — aos menos desde que ele se recordava. Normal, simplesmente normal, eram assim suas idas e vindas pelas ruas da pequena cidade da qual sempre fazia questão de esquecer de lembrar. Também eram normais as noites mal dormidas e cheias de rugas encravadas naquela cidade grande — na verdade, nem tão grande — onde seu coração nunca queria estar, mas suas vontades, justificadas como necessidades, o levavam sempre a se deixar ficar.

– Bom dia

Um aceno de cabeça, sem muito entusiasmo, bastava como resposta, sem nem mesmo desviar o olho daquele nada quase absoluto que lhe inundava as primeiras horas do dia e só iria desaguar em madrugada quase na hora de, novamente, se levantar. Também recorria o desânimo ao pedir um pão na chapa com café sem pestanejar qualquer agradecimento a senhora de sorriso farto que, mesmo assim, insistia:

– O moço tá preguiçoso hoje?

– Normal

Normal eram cada um dos paralelepípedos — que já conhecia de cor — com os quais dividia os pensamentos naquelas manhãs abafadas, indo e voltando, pelos mesmos caminhos e para os mesmos lugares. Também era normal mentir para si mesmo não notar o sorriso do senhor óculos por trás do jornal, ao reparar em seus passos desajeitados, de quem crescera de modo opaco sempre deixando a vida passar. Tão normal quanto pensar que ninguém percebi a forma com que seu olho sorria ao perceber a curiosidade com que o menino do fim da fila media seus longos fios de cabelo caindo mal cortados sobre os ombros.

- Que demora, heim?!

- Normal

Seco, áspero, involuntário, automático, tudo isso era normal. Reagia a tudo, a todos, como uma leve dor estomacal. Podia notar tudo a sua volta, mas insistia em não olhar, não dialogar e nem contemplar cada detalhe daqueles dias que, curiosamente, tinha tanta vontade de conhecer.

- Próximo!

Dirigiu-se com a mesma preguiça perigosa de sempre para o caixa, resmungou a marca do seu cigarro, apontou para a bala extraforte — que quase sempre o mantinha vivo ao arder sua língua –, tirou os trocados do bolso mimeticamente e… foi interrompido.

– Desculpa, moço

– Oi? — Respondeu sem vontade.

– Dói?

– O que? — Fingiu não saber.

Ela, a mulher do caixa, deslizou os dedos pelo próprio braço e franziu a testa, arregalando os olhos e indicando e admirando os braços dele.

– Normal.

Tão ríspido quanto a fala foram os movimentos incertos que se seguiram. O troco arrancado do balcão, arremessado no bolso — que não sabia, mas estava furado –, a virada brusca, o esbarrão no menino que ainda jazia hipnotizado em seus cabelos, o som das folhas de jornal fechando nas mãos do velho, o sorriso da moça do caixa se desfazendo, o tilintar das moedas que escapavam pelo furo, os olhares por alguns segundos preso as cenas e seus passos vigorosos para fora dali. Passos que contrastavam com o toque leve em seus ombros, uma duas vezes, três. Teve que se virar.

– Moço, você deixou cair…

– Normal.

– Aconteceu alguma coisa?

– Normal

– Desculpe perguntar sobre elas. — Apontou mais uma vez para seus braços.

– Normal

Uma pausa fúnebre para ele, desgostosa para ela.

– É que achei bonitas.

Não respondeu, virou-se e continuou, daquele mesmo jeito de sempre: normal.

•••

O dia que seguiu foi mais desconfortável que todos os outros. Seus olhos estavam mais embaçados do que o de costume. A pele parecia mais fria, os dentes não tinham firmeza, seus cabelos pesavam os ombros e a voz nem tinha melodia. Horas sufocantes, segundos escaldantes, um após o outro. Levantou-se e deu adeus, bem no fundo do coração.

•••

– Como foi hoje. — Perguntou a mãe, acreditando a resposta.

O que se seguiu foram misturas de grunhidos altos, respirações curtas, baforas enérgicas e um relato quase apocalíptico de um dia.… normal.

– Porque todo mundo tem que olhar, perguntar, desconfiar?

– Filho, as pessoas são curiosas…

– Eu queria ser invisível.

– Sim, as vezes isso é normal.

– Normal?

– É, as vezes a gente só quer se esconder.

– Você não entendeu, não quero me esconder, só não quero aparecer.

– (risos)

– Eu só quero…

– Ser você?

•••

Deixou a mãe, sem explicar, e correu com a bicicleta sem entender. Foram apenas segundos mas pareciam horas, talvez dias, percorrendo aquele caminho que lhe parecia tão normal. Chegou a padaria, onde as portas começavam a se baixar, entrou rápido e dirigiu-se ao caixa. Aguardou a sua vez.

– Oi.

– Então, não dói.

– Heim?

– Na verdade dói um pouco, mas depois passa.

– (risos).

– Já fiz tantas que nem sinto mais.

Ela pediu para que ele esperasse com um sinal das mãos. Abriu um sorriso para o outro lado do salão e esperou que o menino chegasse ao lado deles.

– Filho, o moço disse que não dói.

– Ahh, então eu posso fazer?

– Ainda não, você não tem idade.

– Mas eu acho lindo, mamãe.

– Mas, você precisa crescer antes.

– Moço, não dói mesmo? Faz com canetinha, ou com uma agulha grandona? Você tem mais moço? Você sabe fazer? Posso ver você fazer?

A mulher interrompeu o menino colocando os dedos nos lábios, dando uma piscadela de olhos e voltou-se para ele.

– Desculpe moço, todo dia ele me pergunta a mesma coisa.

– Sem problemas.

– É que criança tem sempre curiosidade.

– Curiosidade é normal.

Sem pensar ele pediu um chiclete, abriu colocou na boca, pegou o menino no colo e colocou sobre o balcão. Pergunto se ele gostava de caveiras e se admirou com o sorriso nos olhos do garoto. Molhou os dedos na pia logos ao lado do caixa e pressionou sobre o papel nos ombros do moleque.

– Pronto, agora você também tem uma tatuagem.

Despediu-se e saiu pela porta de metal que já estava meio abaixada, com o dia quase chegando ao fim. Seguiu pela rua, tão vivo e normal que até parecia invisível.

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